Tem dias que não são só dias. São encontros que nos atravessam, sabores que contam histórias, imagens que nos espelham — são espirais. O fim de semana foi desses. Uma travessia em Salvador que começou no alto — em todos os sentidos.
Fui visitar o Museu de Arte Moderna da Bahia, o MAM, que é muito mais que um museu: é um organismo vivo de arte, memória e contemplação. Uma antiga capela colonial, agora lugar sagrado para outras expressões do sagrado. Vista para a Baía de todos os Santos, paredes que guardam séculos e, ali dentro, ela: Goya Lopes, em sua primeira exposição individual — Okòtò.

Goya é dessas mestras que desenham em idioma próprio (e eu sempre acreditei nisso, nessa identidade, nesse traço peculiar dos artistas). Como diz o texto curatorial da mostra, sua obra parece, à primeira vista, um continuum. Mas ao olhar com mais cuidado, revela-se um emaranhado de camadas, ancestralidades, invenções. Tecidos estampados que carregam história, rostos, gestos e resistências. E várias outras bases em que ela manifesta a sua criação.
Ela borda o tempo. Desenha em caracol — como nos ensina Leda Maria Martins: a evolução é espiralada. Não se faz em linha reta. O caracol carrega nas voltas do casco a própria memória do caminho. E Goya também.
Seu traço é espelho e performance de tudo que nos trouxe até aqui.

“Ser caracol. Carregar, em si, as espirais da experiência”
Depois do Museu, fui saciar outra fome: a de comida com afeto.
Fui ao restaurante Dona Suzana, que fica numa comunidade próxima.
Ali, tradição e território não são conceitos — são cheiro de comida gostosa, panela no fogo e afeto servido no prato. A cozinha é extensão da casa. O restaurante, um abraço da comunidade.
Na mesa ao lado, Clara: antropóloga, carioca, mora em São Paulo. Estava sozinha também. Convidei para almoçar comigo. O que era acaso virou encontro. Conversamos sobre cultura, território, inovação. Trocamos saberes, abrimos janelas de compartilhamento de experiências.

Terminamos o dia tomando sorvete no bairro Ribeira, numa sorveteria que tem o mesmo nome e foi fundada em 1931. Quase cem anos de tradição, atravessando gerações de gente, processos e sabores.

No domingo, conheci a famosa moqueca baiana. E sim, ela encara de frente a capixaba. Um embate ancestral e territorial necesssário.
O que me fica é uma certeza: o que chamam de inovação, às vezes, só precisa de tradução.
Ela já está no tempero da Dona Virgínia, na sorveteria que atravessa séculos, na arte que representa o nosso Brasil tão incrível, movimento de chamar uma pessoa desconhecida pra dividir a mesa, numa cidade que se mostra inteira quando a gente se deixa atravessar.
Salvador não se explica.
Se vive, se dança, se come, se encontra.
E a cidade que canta no Pelô também encanta pela Baía de Todos os Santos. Porque a tradição não é o oposto da inovação — elas caminham juntas, não em linha reta, mas entrelaçadas como caracóis, em espirais do espaço-tempo.
Uma resposta
esse reconhecimento da própria história, singularidade, pra mim é essencial em qualquer inovação. E a cultura ancestral já sabe disso há séculos. É só a gente aprender com eles.
Que lindeza de texto! 🙂